O artigo 58 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), aprovada em 2015, foi regulamentado no último dia 26 e deve trazer avanços para a moradia inclusiva no País. A LBI determina a eliminação de barreiras, entraves e obstáculos arquitetônicos em edifícios públicos e privados. E o decreto obriga a acessibilidade em novos conjuntos residenciais.
Ficou estabelecido que 100% das unidades já devem ser projetadas prevendo a possibilidade de adaptação posterior. Isso significa que elas devem possuir características construtivas que permitam, a partir de alterações de layout, dimensões internas ou quantidade de ambientes, a adaptação para uma unidade internamente acessível, sem que sejam afetadas a estrutura da edificação e as instalações prediais.
O decreto também determina que a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida, ao adquirir um imóvel na planta, possa requerer à incorporadora que a unidade já seja entregue totalmente acessível, sem custo extra algum. O pedido precisa ser feito por escrito antes do início das obras.
Além disso, o texto lista as adaptações construtivas que deverão estar disponíveis para escolha do requerente de acordo com suas necessidades. Também serão disponíveis: puxador horizontal na porta do banheiro, barras de apoio no box e bacia sanitária, torneiras com acionamento por alavanca ou sensor, fita contrastante para sinalização de degraus e registros, bancadas, lavatórios, quadro de energia, interruptores e tomadas com altura adequada a pessoas com nanismo.
A funcionária pública Marlene Regonha, de 60 anos, quebrou os dois joelhos há mais de 20 anos e usa bengala. Prevendo necessidades futuras, Marlene colocou barras de apoio no banheiro e aumentou a altura do vaso. “A mobilidade reduzida é algo que todos podem ter em algum momento das suas vidas”, diz.
Para os empreendimentos que adotarem sistema construtivo que não permita alterações posteriores, tais como alvenaria estrutural, paredes de concreto, impressão 3D ou equivalentes, a regra é que 3% do total de apartamentos já seja projetado com as características da unidade acessível, independente de haver demanda futura.
O texto prevê, também, que 2% das vagas de garagem sejam reservadas para veículos transportando pessoas com deficiência ou baixa mobilidade.
A consultora de comunicação Célia Corrêa, 51 anos, é deficiente física e sofre com a inacessibilidade da garagem de seu prédio, em Santana. Ela teve que pedir emprestada a vaga de outro morador, pois a sua não deixava espaço para a abertura da cadeira de rodas ao lado da porta do carro. Célia tem planos de mudar de condomínio e vê com bons olhos a regulamentação, porém avisa: “A adaptação é ótima, mas todos precisam começar a nos ouvir mais. Só a pessoa com deficiência sabe bem do que precisa”.
O decreto regulamentado foi escrito pelo Ministério dos Direitos Humanos em parceria entidades do setor imobiliário. “Representa avanço significativo em relação ao atendimento da LBI e rumo à arquitetura inclusiva”, afirma Carlos Borges, vice-presidente de Tecnologia e Sustentabilidade do Sindicato da Habitação (Secovi-SP). Para o presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), Luiz Antonio França, “abriu-se uma janela muito grande e importante para que a pessoa com deficiência possa comprar empreendimentos já adaptados – é um avanço no segmento da incorporação”.
Prazo. Prevendo período de adaptação, o decreto só será válido a partir de janeiro de 2020. “Por questões de obras que já estão avançadas, projetos iniciados e protocolos de licenciamento que já foram realizados na municipalidade, foram concedidos 18 meses para a lei entrar em vigor”, diz o advogado especialista em direito imobiliário Mauro Cruzeiro.
Para a professora Cristiana Cerchiari, de 43 anos e cega de nascença, a acessibilidade na moradia deve começar no momento da compra. “Falta oferecer propagandas acessíveis, com plantas e ilustrações em formato descritivo, para atingir um público ainda maior.”
Exceções. Algumas tipologias ficam dispensadas da obrigação. São elas: as unidades com um dormitório e, no máximo, 35 metros quadrados, e os apartamentos com dois dormitórios e área útil de até 41 metros quadrados.
Além disso, também não são atingidos pela lei programas habitacionais públicos ou subsidiados, objetos do artigo 32 da Lei Brasileira de Inclusão, que prevê às pessoas com deficiência prioridade na aquisição de imóveis desses programas e direito a ocupar pelo menos 3% das unidades habitacionais.
Além de garantir moradia acessível às pessoas com deficiência, o disposto no artigo 58 antecipa, também, o envelhecimento da população brasileira. Pesquisa do IBGE mostra que um em cada quatro brasileiros será idoso em 2060. Em 2039, o número de pessoas acima de 65 anos superará o até 14 anos. “As pessoas mais velhas, naturalmente, podem precisar de cadeira de rodas, de tecnologia assistiva ou de barras de apoio”, diz Borges.
Área comum de prédio deve remover obstáculos à mobilidade
As áreas comuns dos condomínios também devem ser inclusivas. Além de a Lei Brasileira de Inclusão prever os conceitos gerais de acessibilidade em espaços públicos e privados, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) possui a série de normas NBR 9050, que dá as diretrizes sobre como alterar um espaço para deixá-lo acessível. Na prática, entretanto, muitos condomínios só se tornam acessíveis quando precisam de algum alvará de obras da Prefeitura.
“A municipalidade não autoriza a realização de mudanças ou melhorias no empreendimento sem que ele já tenha, ou que o projeto de reforma preveja, as adaptações necessárias”, diz Mauro Roberto Cruzeiro, do departamento de direito imobiliário do Braga Nascimento e Zilio Advogados.
O presidente da Associação das Administradoras de Bens, Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC), José Roberto Graiche Junior, ressalta que as alterações nas áreas comuns que envolvam modificação de layout devem prever a acessibilidade. “Já o que não é reformado, acaba não sendo adaptado.”
Segundo Cruzeiro, um condomínio que não tenha acessibilidade está irregular perante a lei e o síndico pode, inclusive, ser processado por improbidade administrativa, pois “tratase de uma omissão frontal às pessoas com deficiência”.
No condomínio da professora Cristiana Cerchiari, deficiente visual, a boa vontade da administração e demais moradores proporcionou facilidades na rotina
“Em uma reunião, um dos condôminos sugeriu que fosse colocada voz nos três elevadores do prédio. Isso me ajudou muito, me dá tranquilidade maior saber que estou descendo no andar certo”, conta. Cristiana, no entanto, sente falta de pisos táteis, previstos pela Lei Brasileira de Inclusão.
Blitz. O Instituto Cidades e Condomínios (ICCOND) realizou, no início do mês, uma blitz de acessibilidade nas entradas de prédios do bairro de Moema.
Na ação, 35% dos edifícios visitados não dispunham de nenhuma facilidade de acesso e 46% tinham apenas acesso parcial (com rampas ou acessos laterais, mas com portões manuais ou sem corrimãos). O resultado foi que 102 condomínios receberam notificações orientativas. “São obras simples de serem feitas. O acesso deve ser universal e aberto a todos”, afirma o presidente do instituto, Dostoiévscki Vieira.
O ICCOND pretende realizar blitz em outros bairros da cidade e voltar aos empreendimentos irregulares em Moema no prazo de 180 dias. Caso não haja mudanças, devem entrar com recurso judicial contra os condomínios, afirma Vieira.
Fonte: O Estado de São Paulo
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